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O que está acontecendo no Irã?

"Seguem uns dos registros mais revolucionários desse momento da história da humanidade: as mulheres iranianas se levantaram contra tudo e todos a fim de lutar contra um regime opressivo que - em nome de Deus -, exige delas a prática do bizarro que torna a vida mais difícil do que já é." Antônio Carlos Costa, jornalista e ativista social da ONG Rio de Paz.


É provável que nada mais volte a ser o mesmo no Irã desde o dia 13 de setembro, marcado pela prisão da jovem Mahsa Amini, a qual foi presa e torturada pela Polícia da Moral por não usar o véu islâmico com o rigor exigido pelo Estado à todas as mulheres do país. O espancamento de Mahsa resultou num coma profundo que a levou à morte dias depois. Porém, o que as autoridades governamentais não esperavam é que, dessa vez, seu ato de repressão e sua imposição de controle sobre o corpo feminino não seria apenas mais uma notícia sinistra a estampar poucos jornais e assombrar o imaginário das pessoas, resultando em terror psicológico e silenciamento forçado da população. Em vez disso, algo inédito aconteceu: uma onda de protestos nasceu na capital, Teerã, e rapidamente se espalhou por todo o país. O slogan "Mulher, vida e liberdade", originalmente entoado pelo movimento feminista curdo desde a década de 1980, vibrou nas ruas iranianas nas últimas semanas. Tudo torna-se ainda mais simbólico quando lembramos que Mahsa, além de sofrer repressão do governo pela sua condição de mulher, também a sofria por fazer parte de uma minoria étnica perseguida no Irã: a formada pelos curdos - um povo sem território próprio que, há anos dentro de países árabes, é proibido até de falar a própria língua.


Apesar disso, dizer que "tudo" começou com a morte de Mahsa seria uma tentativa falha de diminuir a gravidade da situação. De fato, os protestos foram externalizados a partir disso, mas a repressão do Estado Iraniano, especialmente contra as mulheres, vem acontecendo de maneira brutal há décadas. As manifestações que estouraram em Teerã no último mês são apenas explosões desesperadas por liberdade - um direito básico humano renegado por muito tempo àquele povo.

"As ditaduras são uma caixinha de surpresas. Chega um momento em que uma pequena notícia de rodapé, apenas uma infâmia dentre muitas, se transforma em um detonador - a cereja do bolo que multiplica a coragem de parte da população e causa uma explosão. A ditadura, então, é desafiada como raramente tem sido." Alain Frachon, jornalista francês.

É provável que poucas pessoas entendam o peso que alguns vídeos do protesto que viralizaram na Internet carregam: retratos de mulheres e homens cortando seus cabelos e queimando os véus. Mostrar os próprios cabelos e cortá-los na frente de todos é o ato mais corajoso que se pode ter num Estado que insiste em controlar o corpo feminino; que se nega a revogar as leis "dos bons costumes" (as mesmas leis que levaram Mahsa à morte); que retalia as manifestações com bombas e violência polícial; que prende e tortura opositores e que faz vista grossa perante o estupro de mulheres manifestantes em plena luz do dia por membros das forças armadas. Os protestos que tomaram conta das províncias iranianas tratam-se de uma tentativa visceral do povo de retomar o domínio sobre si mesmo.



O que está acontecendo no Irã é fruto de um conjunto de diversos fatores sociais e culturais. E, analisar o contexto vigente sem levar em conta as muitas disputas políticas que levaram o país até a situação atual é limitante. Mas, definitivamente, não há dúvidas que a existência de um governo autoritário que tenta impor costumes morais e religiosos à toda a população tem grande parcela de culpa para a eclosão dos protestos. No início deste ano, o Governo - instituído numa fusão entre o clero e o exército -, lançou uma campanha para tentar manter a ordem do regime e reforçar o uso do hijab. Assim, para evitar o "colapso dos bons costumes", deveriam haver patrulhas policiais mais severas nas ruas para fiscalizar e prender quem não usasse o véu escondendo todo o cabelo e pescoço, câmeras de vigilância e centros de reabilitação para mulheres "recalcitrantes" e "histéricas" - termos usados pelas autoridades do Irã para se referir às mulheres que resistissem ao uso forçado do véu. Para os líderes do regime, que publicaram as novas normas de vestimenta no documento "Castidade e Proteção do Hijab", a oposição cada vez maior dos cidadãos ao uso do véu poderia resultar num enfraquecimento do regime a longo prazo e na consequente perda de domínio sobre os corpos. Portanto, opositores deveriam ser reprimidos o mais rápido possível.


"Até mesmo mulheres muçulmanas religiosas são contra a imposição do hijab (...) Acreditam que isso seja uma opção individual de cada mulher. E, ao forçar a utilização do hijab, a cobertura do corpo, o tamanho da manga, não pintar as unhas, o estilo das roupas, isso acaba se tornando uma metáfora do poder do regime." Arlene Clemesha, professora do departamento de Letras Orientais da USP e especialista em conflitos do Oriente Médio.

É evidente que todos sofrem em autocracias. Contudo, um dos grupos mais fragilizados, geralmente, é o formado pelas mulheres - e, nesse caso, pelas mulheres curdas. Quase um século após o extermínio de Guernica, percebe-se que mudam-se os tempos e os lugares, mas o massacre da população feminina permanece uma constante em períodos de crise, numa tentativa de líderes autoritários reafirmarem seu poder e virilidade.



Bibliografia:


FRACHON, Alain. Dans l’Iran de 2022, l’obligation du port du voile est une violence absurde et humiliante: Entre le pouvoir iranien et une population aujourd’hui largement éduquée, conservatrice mais de moins en moins religieuse, la discordance est chaque jour plus frappante, constate, dans sa chronique, Alain Frachon, éditorialiste au Monde. 2022. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/idees/article/2022/10/06/dans-l-iran-de-2022-l-obligation-du-port-du-voile-est-une-violence-absurde-et-humiliante_6144672_3232.html> . Acesso em: 11 out. 2022.


FILIU, Jean-Pierre. Femme, vie, liberté, un slogan qui vient de loin: Cela fait de longues années que certains partis kurdes ont popularisé le slogan Femme, vie, liberté, devenu le cri de ralliement de la contestation en Iran, ainsi que de la solidarité féministe dans le reste du monde. 2022. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/un-si-proche-orient/article/2022/10/09/femme-vie-liberte-un-slogan-qui-vient-de-loin_6145039_6116995.html> . Acesso em: 11 out. 2022.


BERNARD, Eva. Women and the Kurdish Movement in Turkey: “There will be no turning back”. 2014. Disponível em: <https://www.institutkurde.org/info/women-and-the-kurdish-movement-in-turkey-sthere-will-be-no-turning-backs-1232550763.html> . Acesso em: 11 out. 2022.


ZERROUKY, Madjid. En Iran, une défiance croissante entre la population et le régime: Un rapport diffusé dans l’administration en début d’année s’inquiétait de l’effondrement des valeurs et prônait une série de nouvelles mesures répressives pour imposer le hidjab: patrouilles, vidéosurveillance et centres de rééducation. 2022. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/international/article/2022/10/07/en-iran-l-enquete-premonitoire-de-la-police-des-m-urs-sur-le-port-du-voile_6144782_3210.html> . Acesso em: 11 out. 2022.


G1. ONG diz que 185 pessoas foram mortas em protestos no Irã; 19 delas seriam crianças ou adolescentes: Organização diz que busca documentos para verificar as idades das vítimas. O governo iraniano tem reprimido violentamente protestos pela morte de uma jovem presa por 'uso inadequado' do véu islâmico. Atos acontecem desde 16 de setembro. 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/10/09/ong-diz-que-185-pessoas-foram-mortas-em-protestos-no-ira-19-delas-seriam-criancas-ou-adolescentes.ghtml> . Acesso em: 11 out. 2022.


CARDOSO, Jessica; PIMENTEL, Juliana; GUIMARÃES, Luisa. Hijab e cabelos: os símbolos dos protestos das mulheres no Irã: Especialistas avaliam que iranianas lutam pela escolha de usar o véu islâmico; também pedem a queda do regime. 2022. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/internacional/hijab-e-cabelos-os-simbolos-dos-protestos-das-mulheres-no-ira/> . Acesso em: 12 out. 2022.


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